Por Marielle Sant’Ana
Edgar Franco é um artista multimídia e tem experimentado criar trabalhos para suportes hipermidiáticos, batizando essa linguagem híbrida de quadrinhos e hipermídia de “HQtrônicas” (histórias em quadrinhos eletrônicas), cuja pesquisa foi desenvolvida em seu mestrado. Um de seus trabalhos, intitulado “NeoMaso Prometeu”, recebeu menção honrosa no 13º Videobrasil – Festival Internacional de Arte Eletrônica (Sesc Pompéia/2001). Sua pesquisa de doutorado “Perspectivas pós-humanas nas ciberartes” foi premiada no programa “Rumos Pesquisa 2003” do Centro Itaú Cultural, em São Paulo.
Para entendermos o pós-humano e o entrelaçamento deste tema com a arte, segue a entrevista concedida, via correio eletrônico, pelo professor e artista Edgar Franco:
Marielle Sant’Ana: O conceito do termo ‘humano’ remete-se ao próprio homem enquanto ser biológico. ‘Pós-humano’ refere-se a algo além do humano, isto é, a extensão da natureza, o homem, em junção com a tecnologia, a máquina. Como surgiu o seu interesse pelo pós-humano na arte?
Edgar Franco: O termo pós-humano é motivo de muitas controvérsias e definições diversas. A compartimentação e corporativismo das áreas acadêmicas acabam por gerar muitas visões divergentes sobre o que pode vir a ser o pós-humano. Na verdade, o termo foi inventado pelo intelectual norte-americano de ascendência egípcia Ihab Hassan em um ensaio publicado em 1977 na Georgia Review intitulado Prometeus as Performer: Toward a Posthumanist Culture. O autor acreditava que esse neologismo poderia ser usado como mais uma "imagem do recorrente ódio do homem por si mesmo". A definição de pós-humano que mais me interessa é a que trata de uma possível ruptura na compreensão tradicional do que consideramos "humano" a partir das mudanças de ordem física e cognitiva que os processos hipertecnológicos - como biotecnologia, nanorobótica, nanoengenharia, prostética, conexão em rede, robótica e realidade virtual - estão produzindo em nossa espécie e de uma perspectiva de aceleração dessas mudanças.
As artes narrativas tradicionalmente já discutem a hibridação do humano desde o início da expansão tecnocientífica. O primeiro romance de ficção científica da história, Frankenstein, da autora inglesa Mary Shelley, já tratava da criação de um ser que mixava partes de muitos outros humanos para sua criação, e era um produto da ciência. Talvez esse seja um dos precursores da concepção atual de pós-humano. No cinema, monstros híbridos humanimais ficaram notórios também, como nas adaptações do célebre romance "A Ilha do Dr. Moreau" de H.G. Wells, um trabalho fenomenal que antecipou experimentos recentes da tecnociência como a criação da primeira ovelha transgênica que inclui 15% de genética humana.
Enfim, acho que o meu interesse pelo universo do pós-humano nas artes vem da infância, desde quando comecei a fascinar-me pela literatura, HQ e cinema de FC (Ficção Científica). Mas não é só nas artes narrativas que o pós-humano tem gerado trabalhos contundentes, também artistas da chamada ciberarte têm utilizado inclusive de tecnologias como transgenia e robótica para fazerem reflexões sobre a condição pós-humana, como Stelarc que implantou uma terceira orelha em seu braço esquerdo, e Eduardo Kac que produziu uma coelha transgênica fluorescente e objetivava transformá-la em seu animal de estimação.
Sou adepto da ideia de que os artistas funcionam como "antenas da raça" - uma concepção do genial teórico da comunicação canadense McLuhan - ou seja, os artistas têm essa capacidade de vislumbrar o porvir e esse é um dos papéis fundamentais da arte no seio da cultura ocidental. Infelizmente, poucos compreendem essa importância seminal da arte e ela continua sendo vista como "adereço" pela maioria dos setores da sociedade. E não confundamos aqui cultura de massa, feita para alimentar a indústria do entretenimento com arte.
Edgar Franco em foto para o projeto musical Posthuman Tantra
MS: Quadrinhos como o ByoCiberDrama e Transessência, além do projeto musical da banda Posthuman Tantra são alguns de suas manifestações artísticas que se inspiram no pós-humano. De que forma este conceito estrutura sua arte?
EF: Minha obra multimidiática tem sido estruturada, desde 2000, sob o leque de um universo ficcional transmídia chamado de "Aurora Pós-humana". Esse mundo de ficção científica evoluiu muito no período de minha pesquisa de doutorado em artes na USP e foi inspirado pelos artistas, cientistas, tecnólogos e filósofos que refletem sobre o futuro da espécie humana a partir de suas relações com os processos de aceleração hipertecnológica. Também sou influenciado pelos reflexos do pós-humano na cultura pop, com o surgimento de filmes, animações, etc., e de seitas como a dos Extropianos, Transhumanistas, Prometeianos e Raelianos. Estes últimos, por exemplo, crêem na clonagem como possibilidade de acesso à vida eterna, nos alimentos transgênicos como responsáveis futuros pelo fim da fome no planeta, e na nanotecnologia e robótica como panacéia que eliminará o trabalho humano, liderados pelo pseudo-guru Raël, um hedonista que constrói todo seu discurso a partir das previsões mais otimistas da cência.
Nesse caldo fervilhante de polêmicas, previsões e vivências, surgiu, ainda no ano de 2000, o germe desse universo poético-ficcional que posteriormente batizei de "Aurora Pós-humana". A idéia inicial foi imaginar um futuro, não muito distante, onde a maioria das proposições da ciência & tecnologia de ponta fossem uma realidade trivial, e a raça humana já tivesse passado por uma ruptura brusca de valores, de forma (física) e conteúdo (ideológico/religioso/social/cultural). Esse universo foi batizado inicialmente de "Aurora Biocibertecnológica"; um futuro em que a transferência da consciência humana para chips de computador fosse algo possível e cotidiano, onde milhares de pessoas abandonarão seus corpos orgânicos por novas interfaces robóticas. Imaginei também que neste futuro hipotético a bioengenharia teria avançado tanto que permitisse a hibridização genética entre humanos e animais, gerando infinitas possibilidades de mixagem antropomórfica, seres que em suas características físicas remetem-nos imediatamente às quimeras mitológicas. Finalmente imaginei que estas duas "espécies" pós-humanas tornaram-se culturas antagônicas e hegemônicas disputando o poder em cidades-estado ao redor do globo enquanto uma pequena parcela da população, uma casta oprimida e em vias de extinção, insiste em presevar as características humanas, resistindo às mudanças.
Dessas três raças que convivem nesse planeta Terra futuro, duas são, o que podemos dizer, pós-humanas, sendo elas os "Extropianos" (seres abiológicos, resultado do upload da consciência para chips de computador) e os "Tecnogenéticos" (seres híbridos de humano e animal, frutos do avanço da biotecnologia e nanoengenharia). Tanto Extropianos, quanto Tecnogenéticos contam com o auxílio respectivamente de "Golens de Silício" – robôs com inteligência artificial avançada (alguns reivindicam a igualdade perante as outras raças) e "Golens Orgânicos" – robôs biológicos, serventes dos Tecnogenéticos. A última raça presente nesse contexto é a dos "Resistentes", seres humanos no "sentido tradicional", raça em extinção, correspondendo a menos de 5% da população do planeta.
Ilustração por Edgar Franco
Este universo tem sido aos poucos detalhado com dezenas de parâmetros e características. Trata-se de um work in progress que toma como base todas as prospecções da ciência e das artes de ponta para reestruturar seus parâmetros. A partir dele já foram desenvolvidos uma série de trabalhos artísticos, em diversas mídias e suportes, atualmente outras obras estão em andamento.
“ByoCiberDrama" é um álbum de quadrinhos que traz a história de um resistente. Ainda nos quadrinhos tenho a série de gibis "Artlectos e Pós-humanos", com HQs curtas que se passam no contexto de meu universo ficcional. O terceiro número, lançado em 2009, recebeu o Troféu Bigorna de melhor publicação Brasileira de Quadrinhos de aventura. No campo das narrativas híbridas, tenho as HQtrônicas (HQs eletrônicas), "Neomaso Prometeu" (Menção honrosa no 13º Festival Videobrasil), "Ariadne e o Labirinto Pós-humano" e "brinGuedoTeCA 2.0". No campo da web arte, tenho o site de vida artificial "O Mito Ômega" (www.mitomega.com), trabalho a série de ilustrações híbridas chamada de "A Era Pós-humana". Criei no ano passado a instalação interativa "Immobile Art" e, finalmente, tenho o projeto musical sci-fi ambient "Posthuman Tantra" que é contratado da gravadora Suíça Legatus Records e estará lançando nesse ano seu segundo CD oficial. Todos esses trabalhos envolvem aspectos diferenciados do universo ficcional da "Aurora Pós-humana".
*Edgar Franco é arquiteto pela UnB (Universidade de Brasília); Mestre em Multimeios pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas); Doutor em Artes Plásticas pela ECA/USP; e professor da FAV- UFG - Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás, em Goiânia.
Muito legal o seu Blog, Marielle! Valeu pela entrevista!
ResponderExcluirAbraço pós-humano,
Edgar Franco
Puxa, Mari, que entrevista rica de informações!
ResponderExcluirGostei e aprendi mais um pouco sobre o pós-humano.