quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Você em mim


- Vou ficar com você para sempre dentro de mim.

Um pedaço de Pedro pulsava forte e energicamente em Guilhermina. Um prazer indescritível de se sentir viva de verdade pela primeira vez depois de anos de sofrimento. Uma compatibilidade rara entre dois seres que ela esperou pacientemente por anos.

Ela não sabia o passado de Pedro. Será que ele teve muitos amores? Desilusões? O que ele gostava de ouvir, ler, assistir? O que fez ele se tornar uma pessoa tão sensível para com o mundo? Será que escreveu algum livro sem publicá-lo? Viajou para que lugares?

Muitas perguntas que não tiveram tempo de ser respondidas. Mas o importante era que o presente os entrelaçava de maneira especial. No ontem de Pedro, Guilhermina carregava o seu futuro por causa do amor tão desprendido, despretensioso, sem esperar nada em troca, fornecendo uma esperança simples e gratuita.

Ao terminar o banho, a mulher viu sua cicatriz no espelho. O acidente de carro tinha tirado a presença de Pedro na Terra e o coração que habitava nele tinha sido transplantado para dentro do seu peito. Com um misto de gratidão e bondade, Guilhermina fez sua meditação.

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Quando se nasce mulher


"Não se nasce mulher, torna-se mulher."
Simone de Beauvoir

- Que coisa idiota é sangrar todo mês...
     Silvana não compreendia a especificidade de sua natureza. Seu corpo estava trabalhando nos conformes, desfazendo os velhos móveis da casa que poderia ser abrigo a um novo ser. Mas, simplesmente, ela odiava passar por toda aquela humilhação vermelha com dores de cabeça, cólicas bem no pé da barriga e um humor irritadiço.
Nem O.B. na causa resolvia seu problema. Por mais ousada que fosse no karatê, ao surgir a primeira iminência de menstruação, nem tentava esboçar qualquer espírito de luta com medo que sua vestimenta toda branquinha, o kimono, ficasse sujo. Nadar na piscina, usar uma minissaia descolada ou mesmo cruzar as pernas lhe parecia ser ações poucos seguras: “vai que, né, o pior acontece?”.
Por questões de saúde, nenhum especialista a recomendava parar com a periodicidade de seu ciclo menstrual. Uma amiga achava essa atitude de Silvana incompreensível, pra não dizer estranha. Como uma mulher daquela idade ainda não aceitava completamente o seu corpo da forma como ele se apresentava?
Diante a imaturidade de Silvana, a boca de Leila deu voz à pergunta que nem esperava resposta, só para instigar mesmo a reflexão da outra. 
- Certamente, por esse quesito, eu devo ser uma mulher em gênero, mas não em grau. Se fizesse um teste online, desses tipo revista Capricho, ficaria mais que provado que minha feminilidade não deve ultrapassar nem 30% – ironizou Silvana.
- Ai, Nana, na real? Vai ver você nasceu com a alma certa num corpo incerto... Vai ver é para sua alma evoluir mais rápido!
        Ambas se entreolharam e começaram a rir. Uma forma de amenizar o assunto. Melhor do que alfinetar uma a outra com espinhos que não mereciam ser expostos. “Mesmo que você tire o útero, você não é menos mulher”, pensava Leila. “Mesmo com esses 200ml de silicone em cada mama, isso não te faz mais mulher”, concluía Silvana.
Enquanto isso, os dentes brancos enfileirados com suas arcadas encaixadas se mostravam inofensivos. Tornar-se raposa não é opção quando se nasce raposa em uma matilha social.  

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Entre pérola e diamante


- Eu tenho que guardar isso para mim...           
            Foi assim que Fabiane, ao ouvir aquelas palavras sussurradas às 11 e meia da manhã, concluiu para ela mesma que fosse o melhor. O peso do impensado, com medidas precisas, mas insensatas, fixaram em sua caixinha de memórias por três, talvez quatro anos.
            Entre Sóis e Luas, a moça continuou sua busca árdua de ser o que almejava. Uma tarefa de ourives. O caráter era lapidado com a singularidade e sofisticação mais cara a si para sentir, de fato, multifacetada. Os modelos de perfeição convencionais eram descartados para que a verdade interior brilhasse com beleza e sensibilidade.
             Apesar das delícias do caminho, Fabiane já não aguentava mais suportar o grão de lembrança guardado transformando-se continuamente em pérola. A escuridão e a luz brincavam de gangorra em seu coração. Os pensamentos descontrolados estavam levando-a uma experiência metafísica insuportável.
O momento para a devolução daquele som dourado se fazia emergente. Procurou a cura dialógica em um personagem neutro. Marcou pessoalmente a consulta com o psicólogo. Ao sair, foi surpreendida pelo próprio destino. Confrontada a devolver sem mais rodeios aquelas palavras matinais de Herculano.
            Herculano observava, atônito, sua antiga amada. Ela estava mais magra, sem um pingo de vaidade, com o rosto cru, encoberta por uma aura nebulosa. Enfim, quase irreconhecível.
            Abraçaram-se brevemente. Fabiane queria tanto vê-lo, e, agora, ele à sua frente, não conseguia encará-lo nos olhos. O que fez foi olhar para baixo, com uma timidez beirando o descaso. Conversaram trivialidades e ficou por isso mesmo.
            Quatro palavras engasgadas na garganta de Fabiane. Eu te amo muito. Herculano já não conseguia perceber mais a simples face que amara um dia.