terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Quando se nasce mulher


"Não se nasce mulher, torna-se mulher."
Simone de Beauvoir

- Que coisa idiota é sangrar todo mês...
     Silvana não compreendia a especificidade de sua natureza. Seu corpo estava trabalhando nos conformes, desfazendo os velhos móveis da casa que poderia ser abrigo a um novo ser. Mas, simplesmente, ela odiava passar por toda aquela humilhação vermelha com dores de cabeça, cólicas bem no pé da barriga e um humor irritadiço.
Nem O.B. na causa resolvia seu problema. Por mais ousada que fosse no karatê, ao surgir a primeira iminência de menstruação, nem tentava esboçar qualquer espírito de luta com medo que sua vestimenta toda branquinha, o kimono, ficasse sujo. Nadar na piscina, usar uma minissaia descolada ou mesmo cruzar as pernas lhe parecia ser ações poucos seguras: “vai que, né, o pior acontece?”.
Por questões de saúde, nenhum especialista a recomendava parar com a periodicidade de seu ciclo menstrual. Uma amiga achava essa atitude de Silvana incompreensível, pra não dizer estranha. Como uma mulher daquela idade ainda não aceitava completamente o seu corpo da forma como ele se apresentava?
Diante a imaturidade de Silvana, a boca de Leila deu voz à pergunta que nem esperava resposta, só para instigar mesmo a reflexão da outra. 
- Certamente, por esse quesito, eu devo ser uma mulher em gênero, mas não em grau. Se fizesse um teste online, desses tipo revista Capricho, ficaria mais que provado que minha feminilidade não deve ultrapassar nem 30% – ironizou Silvana.
- Ai, Nana, na real? Vai ver você nasceu com a alma certa num corpo incerto... Vai ver é para sua alma evoluir mais rápido!
        Ambas se entreolharam e começaram a rir. Uma forma de amenizar o assunto. Melhor do que alfinetar uma a outra com espinhos que não mereciam ser expostos. “Mesmo que você tire o útero, você não é menos mulher”, pensava Leila. “Mesmo com esses 200ml de silicone em cada mama, isso não te faz mais mulher”, concluía Silvana.
Enquanto isso, os dentes brancos enfileirados com suas arcadas encaixadas se mostravam inofensivos. Tornar-se raposa não é opção quando se nasce raposa em uma matilha social.  

2 comentários:

  1. Muito feminil, em todos os sentidos, desde o título, a epígrafe, até o malicioso e reflexivo final. A essência, por assim dizer, da condição mulher. Gosto de ler teus textos: são bem construídos, bem escritos e sempre instigadores.

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  2. Mari, sou suspeita para comentar teus textos! Afinal, sou avó deles (rsrsrsrsrsrss). Filha de peixe... (já sabes o final). Que 2015 venha forte com mais inspirações e, assim, podermos publicar novos livros! Beijos.

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